domingo, setembro 16, 2007

Quirinanças e Pedrosices (*)


Sou um matuto da capital. Pernambucano da gema, gerado no Paissandu e nascido na Boa Vista no início dos anos sessenta do século que passou. Menino recifense criado no subúrbio (hoje chamado periferia) da antiga e abrangente Casa Amarela em um tempo não tão remoto, mas que ainda dava pra tomar-se banho e lavar roupas no Rio do Brejo, pra meu padrinho Tiantônhe criar vacas e cuidar da venda, sortida de tudo quando era mercadoria, secos, molhados e mangaios.

Cresci num terreiro vasto onde nunca faltou galinha, pato ou ganso, guiné, um cachorro, por muito tempo um jacaré, e outros bichos em abundância, como muriçoca e maruim; eventualmente agregava-se à fauna doméstica peru, gato, papagaio, camaleão, sagüim; época dos brinquedos feitos por meu pai (balanço, burrica) e por meu avô (carrinho de madeira, cata-vento e outras engenhocas); das brincadeiras de toca, de pega, de se esconder, de mandraque; de bola só me dava bem com as de gude e também morria de raiva e de frustração porque nunca tive jeito pra empinar papagaio, pipa ou chalopa; fiz figuras moldando o barro ou enfiando palitos em buchas verdes transformando-as em animais os mais diversos; andei de cavalo-de-pau brincando de faroeste e fiz bolinha de sabão assoprando em canudo de talo de folha de mamoeiro. Tomei banho de biqueira e sapateei na chuva. Viajei de trem pra visitar Severino Gomes e lá comi doce de coco feito em fogão de lenha numa tapera de um velho sítio. Levei lapada de rabo de vaca, golpe só comparado a uma inesperada mãozada que um boneco gigante me deu lá no carnaval de Olinda.

Menino ainda, li folhetos pra meu avô paterno e ouvi dele e de meu pai histórias de assombração, causos do povo do interior, lá dos engenhos de Ipojuca, de personagens reais e fictícios; aprendi com cartilha de abc e tabuada; ouvi os versos malcriados ao som dos pandeiros de emboladores como Oliveira e Beija-flor (na pracinha do Diário e no Mercado de São José) e dos repentistas pelo rádio, ondas sonoras que me traziam também as vozes do Rei Gonzaga, da rainha Marinês, do mestre Jackson do Pandeiro, de Gordurinha, de Ari Lobo, e de tantos outros artistas não menos talentosos, como o grande Azulão, ainda vivo, bolindo e cantando divinamente, trazido de volta à cena pelas mãos do Herbert Lucena; ouvi de perto a dolente melodia da ciranda de Barbosa e de longe a batida dos bombos dos terreiros, negócio de xangozeiro, que me diziam não ser lá coisa muito católica; assustei-me com o boi do cavalo-marinho nas festas do Sítio da Trindade e desde então me encanto com os cabocolinhos e mais ainda com o frenético ritmo do frevo.

Organizei ovos nos ninhos das galinhas para que nenhum gorasse, pois minha mãe dizia que eu tinha mão boa para isso; subi em pé de pau e lá passava horas “viajando” no meu exílio de criança tímida e sonhadora, fã dos feitos de Santos Dumont, Rui Barbosa e dos heróis Felipe Camarão, Henrique Dias e Matias de Albuquerque; assei castanha, quebrando a casca em carvão com um porrete, fiz anel de caroço de macaíba ralando-o na calçada mais comprida que achava.

Do quintal, comi muita banana prata, manga espada, jaca dura, goiaba branca e vermelha, abacante, caju, e de vez em quando o cardápio era reforçado por ingá, coquinho, carambola, jabuticaba e catolé; além do trivial triunvirato charque, arroz e feijão (às vezes aditivado com bucho ou dendê), lambia os beiços com a gostosura dos caranguejos trazidos de Pontes de Carvalho por Inês, prima de meu pai, da mão-de-vaca, buchada de bode, sarapatel, cozido com pirão de cuscuz tudo preparado por Dona Otacília, minha mãe, que tem um antigo e belo livro de arte culinária, mas que nunca a vi dele fazer uso. Só nunca provei da sua afamada galinha à cabidela por conta do meu eterno protesto por ela ter passado a faca no pescoço de Maria da Pena, galinha que anos antes era aquela pintinha que me foi dada de presente por minha avó materna; desci ladeira desembestadamente em patinete de rolimã, dei cangapé na areia, amassei barro com o pé para fazer parede de taipa, extraí mel de cortiço, arranquei batata-doce e macaxeira, plantei coentro em leirão, tirei água de cacimba e a carreguei em galão; dormi em rede, cama patente e de campanha, um infante sonho de consumo um dia realizado.

Tive sarampo, bexiga, lombriga e moleira mole. Fui tratado com chá de sabugo de milho e outras mezinhas. A rezadeira Dona Maria me curou de um olhado. Tomei muito lambedô e Biotônico Fontoura. Subi a ladeira do Morro em louvor a Nossa Senhora da Conceição e religiosamente contrito ouvia a Ave Maria das seis horas na rádio Clube.

Esse converseiro mais cumprido que braguilha de macacão, mais demorado que lição de moral, mais remoído que conversa de prestamista era pra ser um introdutório à tentativa de explicar a razão desse meu encantamento com a arte dos que se nutrem das coisas do interior e nos alimentam com a brejeirice nordestina que teima e não se deixa massacrar pela modernidade bestializante. E de tanto gostar, acabei contaminado e querendo ser mais um cangaceiro nessa peleja de fazer valer a pernambucanidade, a nordestinidade.

Capitão Chico Pedrosa! Capitão Jessier Quirino! Não tenho bacamarte nem parabelo, não tenho papo-amarelo nem facão Collins para ser recrutado nesse bravo exército caririzeiro, brejeiro e sertanejo, mas acho que dessas armas não precisarei. Tenho no meu bornal aquelas munições que a vida me forneceu na infância às quais juntaram-se outras ao longo dessa minha jornada de escutador de versos e causos, e de matutador de versos e rimas. Fico aqui à mercê de vossas ordens, cordelirando quando dá na veneta e espalhando aos quatro cantos do mundo a força talentosa da obra magistral de artistas como vocês. Se não tenho tutano para o combate direto com as volantes, contento-me em ser um coiteiro ou um guerreiro como o pajeuzeiro Antônio de Juvita (**). O que importa é manter acesa a brasa da causa da cultura popular desta nação nordestina.

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(*) - Texto escrito em 16-09-07, após algumas doses caprichadas e duplas, por via oral e visual, de quirinanças e pedrosices nos dias 13/09 (Pátio de São Pedro) e 15/09 (Tarde no Mercado da Madalena e noite no Teatro Santa Isabel).
(**) - Personagem do poema Guerreiro do Pajeú, escrito por Chico Pedrosa, constante do livro Sertão Caboclo, lançado quinta-feira (13/09) pela Editora Bagaço (www.bagaco.com.br)

3 comentários:

Jorge Filó disse...

Meu poeta Zé Honório
Valeu pela poesia
Que sem carecer de rima
Disse tudo que devia.

Unknown disse...

Isso num é um texto isso é um tratado, sobre o homem pernambucano,nordestino sofrido ou não... esse documento deveria ser exposto em tudo quanto é escola, biblioteca, teatro, cinema, barzinho, igreja, hospital, padaria e farmácia do interior à capital...
pra o nosso povo se lembrar o quanto a gente é rico e se esquece...
Abração Zé Honório, Unicordel, demais poetas e Edições Bagaço. Pela bandeira da cultura hasteada diariamente.

Zé Linaldo.

Anônimo disse...

Grande Honório, parabéns! Sua crônica está excelente e lembrou-me muito minhas matutices lá de Timbauba-PE. Tô chegando!!! rs rs
um abração,
Marcos